sábado, 12 de julho de 2008

Recife (PE)

(Leandro) Voltei ao Recife depois de oito anos ... Aqui morei por três anos, entre idas e vindas a São Paulo para cumprir créditos no Depto de História da USP, desenvolvendo um trabalho de pesquisa sob orientação de Ariano Suassuna. Foram anos mágicos. A rotina acadêmica ocupava uma pequena parte do meu dia e mesmo os encontros periódicos que tinha com meu orientador eram mais voltados às divagações a respeito do Brasil do que à discussão da tese. Lembro-me que em 1999, além do trabalho de pesquisa, gravei 3 CDs: “Descobrindo João Pernambuco”, com a participação de mais de 50 músicos de Recife, João Pessoa, Rio e São Paulo, “João Pernambuco e o Sertão”, em duo com Baden Powell, e “O Guarani”, em duo com Turibio Santos. Que ano!

Na verdade, quando vim para Recife queria mesmo era descobrir o ‘Brasil Real’ (denominação que Ariano incorporou a partir do olhar de Machado de Assis, em oposição ao ‘Brasil Oficial’, ‘caricato e burlesco’), conhecer de perto a cultura popular e o ambiente musical que dera subsídios a muitas mentes criativas. No campo da pesquisa, queria saber que lugar era esse que gerara João Pernambuco, compositor singular que marcou a história da música brasileira. Com este norte, centrei meus esforços na música que se fazia no Brasil no final do século XVIII e início do XIX e escrevi uma dissertação chamada “... e o estrepidoso zabumba põe tudo em alvoroço – Música e Sociedade em Pernambuco na primeira metade do século XIX”. Basei-me nos cronistas do período, em especial no Pe. Lopes Gama que editava o jornal O Carapuceiro, e nos relatos dos viajantes estrangeiros, como Henry Koster, Tollenare, M. Graham e outros. Uma das conclusões foi que a ‘música’ que se fazia no Brasil neste período já possuia características singulares suficientes para ser chamada de ‘música brasileira’. Parece óbvio, mas o senso comum em torno na cristalização de uma cultura ‘nova’ segue repetindo disparates como “o choro nasceu da polca européia quando tocada pelos músicos cariocas no final do século XIX”, me incomodava muito. Até hoje, prescindimos de estudos sérios (com exceção de pouquíssimos autores) sobre o processo que gerou uma ‘música’ singular. Continuam sendo editados livros sobre a ‘história do choro’, ‘história disso e daquilo’, sem rigor metodológico, sem indicações de fontes, cheios de ‘achismos’ e repetições de chavões distorcidos, sem profundidade e coerência intelectual. A riqueza deste período (séc. XVIII e XIX) vem a tona nos estudos voltados à música ‘séria’, ‘erudita’, feitos principalmente por musicólogos que vem recuperando também os registros em papel da música feita na época. No entanto, continua ainda negligenciado algo maior e mais especial que é justamente aquilo nos faz ‘brasileiros’: a mistura do sagrado com o profano, o zabumba dentro da igreja, Mané Chico ‘desafinando’ seu violão para tocar Carulli e Carcassi, e uma nova visão de mundo, livre, desatinada, inconsequente, que arrisca-se para criar uma linguagem poética capaz de expressar o mundo novo e complexo que nos circunda.

Voltando ao Recife de hoje, fizemos um concerto na Igreja da Madre de Deus, no Recife Antigo, para um grande público, carinhoso e ávido por Villa-Lobos. Fiquei emocionado com tudo. Nunca poderia imaginar que voltaria aqui oito anos depois, a frente de uma Orquestra tão boa, para tocar Villa-Lobos. Nestas horas, vejo que valeu a pena seguir meu coração, mudar de rota várias vezes e recomeçar insistentemente. Reencontrei muitos amigos e matei um pouco da saudade desta cidade especial, forte, cheia de personalidade, que nos surpreende a cada esquina. “Voltei Recife, foi a saudade quem me trouxe pelo braço”. Nossa história ainda está começando ....

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