sexta-feira, 13 de junho de 2008

Brasília / Ceilândia

(Leandro) Caros amigos e amigas que acompanham a viagem da Orquestra do Estado de Mato Grosso através deste ‘diário de bordo’,

Hoje vivemos uma experiência singular que gostaria de dividir com vocês. Acabamos de fazer um concerto em Ceilândia, cidade satélite de Brasília. É preciso refletir sobre esta cidade para compreendermos algumas situações que acabamos de passar. O Sesc do DF poderia ter escolhido o teatro da unidade em Brasília propriamente dita, dentro do plano piloto, mas não. Preferiu marcar o concerto numa cidade distante do centro de Brasília, de difícil acesso em função do trânsito pesado e num teatro novo, recém inaugurado, pouquíssimo conhecido de todos. Por quê?

Em muitas cidades, como vocês tem acompanhado pelo Blog, a Orquestra se apresenta nos maiores e mais tradicionais teatros, com uma ampla cobertura da imprensa, para um público habituado a concertos. A Orquestra torna-se a grande atração do dia e acabamos por viver momentos de muita música. É como se estivéssemos em nosso habitat natural. A resposta do público motiva a Orquestra e faz com que nosso desempenho atinja seu ápice. Outras vezes, apresentamos ‘concertos didáticos’ para escolas da rede pública ou para núcleos educacionais mantidos pelo Sesc, como o que acabamos de fazer em Vitória e no Rio de Janeiro.

Hoje fizemos uma espécie de ‘concerto social’. Para que ele faça sentido dentro da programação da Orquestra no projeto Sonora Brasil é importante levar em consideração que Ceilândia tem mais de 500 mil habitantes e nunca teve nenhum teatro, cinema ou qualquer outro tipo de ‘equipamento cultural’ que oferecesse uma programação cultural consistente e permanente. Isso mudou há apenas dois meses, quando o teatro do Sesc passou a funcionar. A unidade está localizada numa área de muita violência, consumo de drogas e prostituição. Em frente a entrada do teatro funciona um ponto de venda de drogas. Estacionado ali, um carro com o volume no máximo, emanando milhares de decibéis de música da pior qualidade possível. Um grande número de pessoas que ali residem, especielmente jovens, não possuem emprego ou renda fixa. O consumo de alcool e drogas também apresenta números alarmantes. O índice de criminalidade desta área de Ceilândia é assustador.

Foi a primeira vez que muitas destas pessoas entraram no teatro do seu bairro para assistir um concerto. No início, muita bagunça e conversa. Pedi silêncio e ressaltei que ninguém deveria se sentir obrigado a estar ali. Foi a primeira vez que comecei um concerto quase dando uma ‘bronca’. Disse que este deveria ser o princípio básico da liberdade e democracia e que ninguém nunca deveria ser ‘obrigado’ a fazer nada. O público aplaudiu. O foco da bagunça silenciou por alguns minutos. Quando começamos a Bachianas 9, se ouvia ainda muito barulho e conversa. Na segunda música, saíram umas vinte pessoas (pela primeira vez na turnê) que ainda soltaram uma ‘bomba’ na saída. Uma pequena explosão se ouviu durante a primeira das ‘Danças Características Africanas’. As mais de 400 pessoas que continuaram no teatro acompanharam o restante do concerto em relativo silêncio.

A sensação foi de ter cumprido uma missão social, de ter plantado uma semente para o futuro. Talvez tenha sido mais importante do que realizar o concerto no plano piloto. Espero que sim. Nestas horas, penso que alguém precisa ‘começar’ o processo de reversão desta quadro, nos locais mais desassistidos do Brasil. A implantação de uma unidade do Sesc nesta área é uma atitude corajosa e de muito valor. Somar com isso deve ser nossa missão. Se muitas vezes as cidades nos recebem com carinho e o público reage com entusiasmo e consciência da importância da música de Villa-Lobos é porque ‘alguém’ começou um processo de formação de platéia anos atrás. No caso do Sonora Brasil, é clara a diferença entre as cidades que recebem o projeto desde o início, há mais de 10 anos, e outras que começaram há pouco tempo. Hoje foi um dia de começar este trabalho. Esperamos que o Sesc possa continuar sua jornada de melhorar a vida das comunidades onde está inserido e que, daqui a 10 anos, quando uma orquestra for tocar em Ceilândia, neste mesmo teatro, ela possa encontrar uma realidade melhor, com um público mais educado e preparado para usufruir a mágica e a beleza da música de Villa-Lobos. Esperamos ainda que menos pessoas morram por crimes violentos, que mais jovens estejam nas boas universidades e escolas, em vez de consumir drogas e ouvir a ‘dança do créu’, e que as pessoas, impulsionadas pela educação, tenham uma qualidade de vida melhor.

Amanhã embarcamos para Goiânia.









3 comentários:

Anônimo disse...

Leandro, acredito q esse momento tenha sido um dos mais, ou até mesmo, o momento mais importante de todo esse programa até aqui...
Fazer música para bons apreciadores é fácil... Pra quem entende, tem noções, nem q sejam as mais básicas, é fácil... Encontrar um público silencioso ávido por boa música, por poesia, por encantamento é o ideal... É só chegar, se posicionar e deixar fluir, afinal vcs trabalham muito pra isso... Ensaios, insistência, dedicação...
Mas o "momento mágico" acontece qdo conseguimos "tocar" uma realidade que está muito longe disso... Fazer parte do processo de mudança... Dar o primeiro passo... Quebrar o comum... Romper o "silêncio" da alma daqueles q nunca se deixaram tocar... Eles faziam barulho no teatro, mas com certeza vcs fizeram "barulho" na alma deles... E romper esse silêncio é o primeiro passo! Daqui pra frente será um trabalho difícil, mas com certeza sem volta, pq o movimento em direção a uma nova realidade já ganhou um empurrãozinho... Agora há de se ter muita garra e força de vontade pra vencer as dificuldades (sociais, econômicas, culturais, etc etc etc) e emplementar um bom trabalho de formação de novas platéias.
Parabéns ao Sesc, Parabéns ao músicos, Parabéns a OEMT. Parabéns à vc Leandro!
Beijo grande

Anônimo disse...

Que comentário lindo! É isso mesmo, Márcia, foi uma experiência e tanto para o pessoal da orquestra. Os desafios daqui pra frente serão muitos, mas tenho certeza que todos os músicos vão se superar a cada apresentação.
Um abraço

Anônimo disse...

Oi Márcia,
Bom 'ouvir' noticias suas e saber que vc está nos acompanhando pelo Blog! Obrigado pelo seu comentário. Gostei do 'fizemos barulho na alma deles'! Espero que sim, afinal, está é a nossa missão.
Mande sempre noticias e apareça sempre por aqui.
Um abraço,
Leandro