Hoje vivemos uma experiência singular que gostaria de dividir com vocês. Acabamos de fazer um concerto em Ceilândia, cidade satélite de Brasília. É preciso refletir sobre esta cidade para compreendermos algumas situações que acabamos de passar. O Sesc do DF poderia ter escolhido o teatro da unidade em Brasília propriamente dita, dentro do plano piloto, mas não. Preferiu marcar o concerto numa cidade distante do centro de Brasília, de difícil acesso em função do trânsito pesado e num teatro novo, recém inaugurado, pouquíssimo conhecido de todos. Por quê?
Em muitas cidades, como vocês tem acompanhado pelo Blog, a Orquestra se apresenta nos maiores e mais tradicionais teatros, com uma ampla cobertura da imprensa, para um público habituado a concertos. A Orquestra torna-se a grande atração do dia e acabamos por viver momentos de muita música. É como se estivéssemos em nosso habitat natural. A resposta do público motiva a Orquestra e faz com que nosso desempenho atinja seu ápice. Outras vezes, apresentamos ‘concertos didáticos’ para escolas da rede pública ou para núcleos educacionais mantidos pelo Sesc, como o que acabamos de fazer em Vitória e no Rio de Janeiro.
Hoje fizemos uma espécie de ‘concerto social’. Para que ele faça sentido dentro da programação da Orquestra no projeto Sonora Brasil é importante levar em consideração que Ceilândia tem mais de 500 mil habitantes e nunca teve nenhum teatro, cinema ou qualquer outro tipo de ‘equipamento cultural’ que oferecesse uma programação cultural consistente e permanente. Isso mudou há apenas dois meses, quando o teatro do Sesc passou a funcionar. A unidade está localizada numa área de muita violência, consumo de drogas e prostituição. Em frente a entrada do teatro funciona um ponto de venda de drogas. Estacionado ali, um carro com o volume no máximo, emanando milhares de decibéis de música da pior qualidade possível. Um grande número de pessoas que ali residem, especielmente jovens, não possuem emprego ou renda fixa. O consumo de alcool e drogas também apresenta números alarmantes. O índice de criminalidade desta área de Ceilândia é assustador.
Foi a primeira vez que muitas destas pessoas entraram no teatro do seu bairro para assistir um concerto. No início, muita bagunça e conversa. Pedi silêncio e ressaltei que ninguém deveria se sentir obrigado a estar ali. Foi a primeira vez que comecei um concerto quase dando uma ‘bronca’. Disse que este deveria ser o princípio básico da liberdade e democracia e que ninguém nunca deveria ser ‘obrigado’ a fazer nada. O público aplaudiu. O foco da bagunça silenciou por alguns minutos. Quando começamos a Bachianas 9, se ouvia ainda muito barulho e conversa. Na segunda música, saíram umas vinte pessoas (pela primeira vez na turnê) que ainda soltaram uma ‘bomba’ na saída. Uma pequena explosão se ouviu durante a primeira das ‘Danças Características Africanas’. As mais de 400 pessoas que continuaram no teatro acompanharam o restante do concerto em relativo silêncio.
A sensação foi de ter cumprido uma missão social, de ter plantado uma semente para o futuro. Talvez tenha sido mais importante do que realizar o concerto no plano piloto. Espero que sim. Nestas horas, penso que alguém precisa ‘começar’ o processo de reversão desta quadro, nos locais mais desassistidos do Brasil. A implantação de uma unidade do Sesc nesta área é uma atitude corajosa e de muito valor. Somar com isso deve ser nossa missão. Se muitas vezes as cidades nos recebem com carinho e o público reage com entusiasmo e consciência da importância da música de Villa-Lobos é porque ‘alguém’ começou um processo de formação de platéia anos atrás. No caso do Sonora Brasil, é clara a diferença entre as cidades que recebem o projeto desde o início, há mais de 10 anos, e outras que começaram há pouco tempo. Hoje foi um dia de começar este trabalho. Esperamos que o Sesc possa continuar sua jornada de melhorar a vida das comunidades onde está inserido e que, daqui a 10 anos, quando uma orquestra for tocar em Ceilândia, neste mesmo teatro, ela possa encontrar uma realidade melhor, com um público mais educado e preparado para usufruir a mágica e a beleza da música de Villa-Lobos. Esperamos ainda que menos pessoas morram por crimes violentos, que mais jovens estejam nas boas universidades e escolas, em vez de consumir drogas e ouvir a ‘dança do créu’, e que as pessoas, impulsionadas pela educação, tenham uma qualidade de vida melhor.
Amanhã embarcamos para Goiânia.
3 comentários:
Leandro, acredito q esse momento tenha sido um dos mais, ou até mesmo, o momento mais importante de todo esse programa até aqui...
Fazer música para bons apreciadores é fácil... Pra quem entende, tem noções, nem q sejam as mais básicas, é fácil... Encontrar um público silencioso ávido por boa música, por poesia, por encantamento é o ideal... É só chegar, se posicionar e deixar fluir, afinal vcs trabalham muito pra isso... Ensaios, insistência, dedicação...
Mas o "momento mágico" acontece qdo conseguimos "tocar" uma realidade que está muito longe disso... Fazer parte do processo de mudança... Dar o primeiro passo... Quebrar o comum... Romper o "silêncio" da alma daqueles q nunca se deixaram tocar... Eles faziam barulho no teatro, mas com certeza vcs fizeram "barulho" na alma deles... E romper esse silêncio é o primeiro passo! Daqui pra frente será um trabalho difícil, mas com certeza sem volta, pq o movimento em direção a uma nova realidade já ganhou um empurrãozinho... Agora há de se ter muita garra e força de vontade pra vencer as dificuldades (sociais, econômicas, culturais, etc etc etc) e emplementar um bom trabalho de formação de novas platéias.
Parabéns ao Sesc, Parabéns ao músicos, Parabéns a OEMT. Parabéns à vc Leandro!
Beijo grande
Que comentário lindo! É isso mesmo, Márcia, foi uma experiência e tanto para o pessoal da orquestra. Os desafios daqui pra frente serão muitos, mas tenho certeza que todos os músicos vão se superar a cada apresentação.
Um abraço
Oi Márcia,
Bom 'ouvir' noticias suas e saber que vc está nos acompanhando pelo Blog! Obrigado pelo seu comentário. Gostei do 'fizemos barulho na alma deles'! Espero que sim, afinal, está é a nossa missão.
Mande sempre noticias e apareça sempre por aqui.
Um abraço,
Leandro
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